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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILATELIA TEMÁTICA

 

 

ARTIGOS PUBLICADOS

PICOTES DO TEMPO

Autor: * Lívio Oliveira

"Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do
que se julgam - compram pequenos sonhos. São crianças no
adquirir. Todos os pequenos objectos inúteis cujo acenar ao saberem
que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-os na atitude feliz de
uma criança que apanha conchinhas na praia - imagem que mais do
que nenhuma dá toda felicidade possível. Apanha conchas na praia!
Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais
bonitas na mão, e quando lhas perdem ou tiram - o crime! roubar-lhe
bocados exteriores da alma! arrancar-lhe pedaços de sonho! -
chora como um Deus a quem roubassem um universo recém-criado.

(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego, trecho nº 295).

Lembro-me bem daquelas tardes das férias ensolaradas dos anos oitenta, em que eu e um de meus irmãos estabelecíamos um roteiro sentimental em busca dos selos desejados para nossas coleções filatélicas infanto-juvenis.

Saíamos do Barro Vermelho de bicicleta. Eu, caçula, na garupa da Monark - Barra Circular, vermelha. Ele, atleta nato desde cedo, não dava demonstrações de cansaço, a não ser quando nos deparávamos com alguma ladeira mais íngreme. Aí, eu tinha mesmo que descer e prosseguir a pé o trajeto específico.

Era uma busca mesma das cores da infância e da juventude. As estampas brilhosas daqueles pedacinhos picotados do mundo. As informações visuais e os elementos lúdicos faziam nossos olhos faiscarem de alegria e o coração batia com o som único, de ouvidos secretos, da descoberta e do encontro. O encontro com o selo buscado, objeto mínimo desejado, o próprio sonho.

Ali começou, também, o nosso interesse comum pelas línguas estrangeiras. Ambos, eu e meu irmão, havíamos sido alunos do querido professor Antenor Laurentino Ramos, quem abriu as portas para que ingressássemos na Aliança Francesa de Natal, por bolsa ganha através dos méritos reconhecidos (graças à sensibilidade enorme do mestre), como honrados estudantes da Escola Estadual Sebastião Fernandes de Oliveira.

O roteiro nos levava ao Tirol de Mussolini Fernandes, que nos abria a porta lateral de sua casa de forma generosíssima, com um pigarro peculiar e enternecedor. Sabia dos poucos dinheiros que levávamos nos bolsos das calças curtas. Mas, não se importava. Escancarava os classificadores de todos os países, temas, cores e formas. Eu, particularmente, ficava absolutamente entusiasmado com os blocos filatélicos brasileiros. Aqueles retângulos com uma imagem em destaque delineada pelo picote. Que belo! Que cores! Sedução lúdica, pura!

Comprávamos pouco. O que desse, com os nossos cruzeirinhos. O Sr. Mussolini, sem se importar, percebia que a diferença ali era o desejo e não a possibilidade da posse. E incentivava nossa persistência. Sempre voltávamos e o velhinho de bigodes brancos e careca reluzente nos recebia da mesma forma: com acolhimento, generosidade e paciência!

O nosso roteiro filatélico comportava também uma descida até o bairro da Ribeira, onde - em sua agência - existia (e acredito que ainda há) um guichê filatélico, com selos exclusivamente brasileiros e novos. Alguns com carimbos comemorativos e tudo o mais!

Ali, na Ribeira, a consulta era mais difícil e solene. Receávamos romper os picotes exatos dos selos. As filigranas perfeitas e trabalhadas milimetricamente pelas máquinas de fazer papel moeda. O chefe do guichê sempre nos alertava sobre o risco ocasionado pelo suor que se desprendia dos corpos expostos ao sol das ruas natalenses e pela pressa na busca e no folhear dos álbuns. Um dentinho perdido do selo e teríamos que pagar. E com que dinheiro? O dinheiro parco dava sempre para menos de uma dezena de selos, ou um pouquinho mais. Ora bolas, mas quem ligava? O importante era a viagem percorrida por mundos outros, temáticas tão diversas e múltiplas quanto os nossos planos de crianças/adolescentes: "personalidades"; "fauna-e-flora"; "Astronáutica"; "religião"; "esportes"; dentre muitos outros modos de perceber um mundo em cores e picotes e que era simplesmente sedutor e fantástico! E o colecionismo é mesmo sedutor e fantástico! Ah! O colecionismo: essa doença que nunca me deixou e que a amo como a uma bela mulher! Ontem, os selos e até as figurinhas; hoje, os livros, os CD's, os DVD's. Continuo impregnado dos desejos e dos sonhos das grandes e pequenas descobertas!

* Lívio Oliveira, Advogado, escritor e poeta




 

 

 

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