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CARTA AOS CARTEIROS

Autor: Dom Lucas Moreira Neves (+)

Publicado originalmente na Revista Temática, Filatelia e Cultura - nº139 - 1996

Na missa que vocês desejaram que fosse celebrada no Santuário incomparável do Senhor do Bonfim, no dia eu o calendário consagra a vocês, queridos carteiros de ser uma simples carta. Carta a vocês que distribuem tantas e, com certeza, recebem poucas.

Começo evocando um escritor francês morto há pouco mais de 50 anos em plena guerra. Atrevo-me a considerá-lo colega de vocês, já que no seu belo livro "Courrier Sud" (Correio do Sul), ele descreve com paixão o ofício quem, por um certo tempo, exerceu como pioneiro do correio aéreo.

Levando cartas e pacotes da Europa para África e para a América do Sul Antoine de Saint Exupéry - falo dele - ressalta como ninguém a dimensão social do ofício de ligar pessoas umas às outras, como fizeram estafetas e mensageiros desde a Antiguidade. Como fazem vocês, hoje.

Dimensão social que tem aspectos profundamente humanos. Apontava-os Gustavo Corção em Crônicas que conservei por muitos anos até extraviá-la e perdê-la nos revezes de uma mudança. Naquela página de rara beleza o autor da "Descoberta do Outro" e das "Lições de Abismo" os sentimentos de um homem que entrevê na penumbra da caixa postal o retângulo alvinitente do envelope que o carteiro, pouco antes, depositara. Entre o instante da descoberta - "Tem carta" - e da leitura, há o espaço breve, mas intenso em que o homem se interroga: "De quem será? É mensagem alegre ou de luto? De amor ou de guerra? De perdão ou de ultraje? De esperança ou de angústia? De ilusão ou de realidade? "Toda uma existência, com seu farnel dos mais variados sentimentos humanos, se pode vislumbrar num átimo no envoltório - escrínio ou caixa de surpresas - que a mão do carteiro deixou deslizar até o fundo da caixa postal na entrada da casa ou no saguão do edifício.

Por isso, o carteiro é, no sentido mais acertado do termo, um verdadeiro comunicador social. Tanto como o proprietário de um canal de TV, o repórter famoso, o ativo e habilidoso operador da mídia. Pois ele, pois em contato duas ou mais pessoas, duas ou mais histórias, duas ou mais aventuras humanas que, por meio da carta, se entrelaçam.

Desse modo, sem saber ou perceber, sem ter plena consciência, vocês amigos carteiros, são humildes tecelões de uma trama humana, de uma rede de relações interpessoais que podem ser de grande alcance. Sei que o telefone, o telégrafo, o fax roubaram muito da tarefa de vocês, porque a comunicação se tornou, com eles, mais veloz. Mas há um certo diálogo entre as pessoas que só a carta consegue fazer. É sabido, de resto, que a troca de cartas também tem procurado se dinamizar.

Não dúvida de que se conhece um pais pelo seu correio este revela, pela sua eficiência e pelo seu custo ao alcance da população, mesmo a de mais baixa renda, a capacidade de intercomunicação no seio do País.
Vocês, carteiros, portanto, não se tornaram inúteis. Vocês continuam a ser e serão ainda, ao fio dos tempos que virão, intermediários solícitos e eficientes entre pessoas, famílias e coletividade no intercâmbio que se estabelece no interior de uma cidade, de um país ou sobre todo o mapa-múndi.

Dimensão humana, pessoal ou familiar. Dimensão social e comunitária. Não haverá também, no ofício de carteiro, uma dimensão religiosa? Com essa pergunta não entendo introduzir nenhuma dissertação teológica - não é o lugar nem a hora.
Mas não resisto ao impulso de comparar a profissão e a vocação de vocês com algumas realidades religiosas.
Recordo-lhes em primeiro lugar, citando um conhecido comentador da Bíblia, que está, por ser Palavra de Deus dirigida, bem pode ser comparada a uma carta. Longa e minuciosa carta de um pai escrita ao longo de vários séculos. Para que? Para falar de Si próprio, da Sua natureza íntima, do Seu Mistério profundo. Para dar notícias - Evangelho quer dizer boas notícias - de casa, da Família Divina, do Reino, Do Desígnio de Salvação já realizada na esperança.

Essa carta de Deus precisou de portadores. De certo modo, esses foram os profetas e poetas de Israel. Foram todos os autores inspirados, instrumentos vivos dos quais Deus se serviu para transmitir Sua Palavra.
Dito isto, porém, se eu tivesse de dar um patrono celeste aos carteiros, penso que escolheria um muito especial. Designaria o arcanjo Gabriel, por ter sido aquele que trouxe a uma simples moça de Nazaré a mensagem mais transcendental e renovadora. Mensagem que realmente transformou o mundo, fazendo a História voltar às suas nascentes e começar de novo a tal ponto que contamos o tempo a partir do acontecimento anunciado por Gabriel. Da carta de Deus, que é a Bíblia, Gabriel traz a Maria a notícia principal: que nela e por ela o Verbo Se fez carne e levantou Sua tenda no meio de nós."

Nesta altura, porém, percebo que a dimensão religiosa do ofício de vocês tem outro aspecto que nos concerne a todos nós: é que cada um de nós, sem exceção, é portador da Carta de Deus, pelo simples fato de ser cristão, cada um de nós, sem exceção, é portador da Carta de Deus, pelo simples fato de ser cristão, cada um de nós, todo dia que Deus dá, se quiser, se não recusar, está levando a alguém. Como imaginar que um de vocês, por preguiça ou comodismo, rasgasse ou queimasse uma carta em vez de levá-la ao destinatário?! Se o fizesse, poderia estar destruindo a vida de alguém. Assim, não pode deixar de levar a correspondência quem é carteiro de Deus.

P.S. - Acabo de me lembrar do apóstolo Paulo chamando seus fiéis de verdadeira carta escrita sem tinta nem papel. Cada um de nós é Carta de Deus, como o é a Bíblia, mas de modo totalmente diverso. É fascinante esta idéia de um carteiro que se identifica com a carta.


Dom Lucas Moreira Neves, cardeal-arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, foi presidente da CNBB - O Estado de S.Paulo (7-02-96)

Publicado na Revista Temática, Filatelia e Cultura, n º 139 (1996)

 

 

 

 

 

 

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